Um vírus, como a mesquinhez, aloja-se, e este, como bom mesquinho, tira-nos o ar, mata-nos, redimensiona-nos.
Porque este é um vírus que já nasceu derrotado, não duvidem, procura fazer o seu caminho muito depressa, levar consigo todos os que puder.
Nasceu derrotado porque se meteu com a espécie animal mais mortífera, aquela que mata com a consciência de o fazer – portanto não será um vírus irracional e desvairado que escapará ao dom de letalidade do ser humano.
Posso dizer que há um lado muito mesquinho em mim que quase se alegra por ser testemunha de um tempo assim, tão extremo, quase terminal. Para os que, como eu, gostam de história, este tempo de factos e de narrativas inéditas, de fontes ocultas e múltiplas sugestões de identificação, permitem o exercício metodológico da pesquisa e do conhecimento vindo da investigação.
A primeira tentação que nos persegue é a do exercício da comparação. Pegar noutras épocas e lugares que produziram acontecimentos catastróficos, e procurar no tempo presente alguns vestígios de proximidade.
O historiador, todavia, não é o jornalista que narra o que lhe parece, seguindo ao minuto aquilo que ouve e vê, mas que o impede de ver e ouvir o resto: tudo o que outra testemunha ouve e vê, ali a dois passos, provavelmente nas suas costas. O historiador precisa de muito mais, é esse o seu saturnismo (a sua doença profissional) e até da distanciação. É então que entra a cultura como método interpretativo, pois é a cultura que identifica e formata o indivíduo e o grupo e que sendo produzida por ambos só ganha sentido quando ambos a interpretam, a fazem, agem, sentem.
Quem gosta de entender a cultura, como uma súmula presença interpretativa do ser humano, fica a desfilar as contas do rosário ou do comboloio (o rosário muçulmano, não confundir com o brinquedo grego, o “primo lúdico” kombóloi) do pensamento, até formar uma pequena opinião aproveitável.
Por um lado, há um terreno observável onde interagem a condição e a consciência. Mas há que desprezar a experiência que não é o fundamento de coisa alguma, pior, há que aceitar que a experiência e a vida não coincidem, pela simples razão de que a experiência é um efeito de pensamentos mais ou menos organizados, pior até, da ideologia. Os universos culturais – o que nos impedem de ter uma identidade coletiva homogénea – e as categorias sociais falam pelo indivíduo que alimenta sempre a esperança de que aquilo que pensa se sobreponha ao que os outros pensam. Isso dilui a consciência e eleva a representação das estruturas inconscientes. Ou tudo isto afinal é um momento em que nem a história nem a cultura me trazem o conforto da mais utópica esperança. E agora, não se duvide, toda a esperança é necessária.
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